segunda-feira, julho 01, 2002



Levante-se o Réu

O Anjo Sucateiro


Por RUI CARDOSO MARTINS

Público, Segunda-feira,1 de Julho de 2002

O senhor Álvaro fez oito operações ao estômago, por causa de más refeições e de um acidente de camião, tem costuras de boneco de pano nos rins e a boca cheia de agrafos. Um dia o coração do senhor Álvaro parou mas foi aberto pelo doutor Fernando Pádua. O senhor Álvaro, se subir a uma balança, pesa quanto muito 48 quilos e tem 43 anos. Vive a apanhar sucata na rua e cheira a limalha de ferro e a bolor de cartão, e também ao cheiro confuso da comida e da falta dela. Pragueja à frente da polícia mas não bate em senhoras. O senhor Álvaro vive na Brandoa e é, acho eu, um anjo.


- Desapartei-as e, quando dou por mim, esta senhora, esta aqui, estava com uma faca na mão, disse o senhor Álvaro no tribunal.


Ele apontava para uma mulher de trança, que lhe lançou uma careta pesada. Ou melhor, não mexeu um músculo da cara, era uma máscara de madeira zangada.


- Acha que ela o queria esfaquear a si?


O senhor Álvaro respondeu o que sabia, não fez insinuações.


- Ela depois disse que era para se espetar a si própria. Agora se era para se espetar a si, ou para me espetar a mim, isso j* não sei...


O senhor Álvaro queria chegar ao único facto que lhe interessava: a criança.
Álvaro estava a tomar banho quando uma vizinha bateu à porta. Começara uma rixa entre duas mulheres noutro andar do prédio. Quando ele chegou, uma tinha os cabelos no ar, a outra agarrava-a. Ele não sabia o que é que a outra estava a fazer em casa da dona Isabel.


- Assistiu ao princípio da briga?, perguntou a advogada de Isabel.


- Eu estou a acabar de dizer que não sei o motivo, como é que assisti ao princípio?! Como começou, como acabou, não sei.


O que ele testemunhou não foi uma rixa, foi um problema a sério.


- A única coisa que eu sei é que havia uma criança com quase 40 graus de febre, a vomitar, e a mãe não fazia nada! Eu cheguei a insultar os agentes todos na esquadra para libertarem as duas para irem tratar da criança, mas eles estavam mais interessados em tirar testemunhos!


A voz do senhor Álvaro subiu, era um solitário a gritar no precipício, a pedir bom-senso às gaivotas. Ele contou-me, lá fora, o que é que disse aos polícias, a um palmo do nariz. Disse:


- Foda-se para esta merda toda, caralho!


O senhor Álvaro chegou às quatro da manhã à esquadra para prestar testemunho da briga, que ocorrera à meia-noite, e não viu a criança.
Perguntou se a tinham levado ao hospital. E os polícias:


- Qual criança?...


Eu vi os relatórios. Os polícias escreveram, nessa noite quente de Julho, que Sara acusa Isabel de, "sem qualquer motivo que o justificasse, a ter agredido com um murro na face, causando-lhe um hematoma junto do olho direito. Todavia, posteriormente sentiu algumas dores no braço direito, etc,
etc..." E que Isabel acusa Sara de a ter agredido com "um murro na face do lado esquerdo" e de lhe ter feito sentir "uma forte dor no couro cabeludo no decurso da agressão em epígrafe".


No decurso da agressão em epígrafe. E depois moradas, profissões, nomes completos e nomes das testemunhas e...


- Foda-se para esta merda toda, caralho! Nós aqui a discutir esta merda sem sentido nenhum e a criança lá em casa a arder em febre!!!


- Qual criança?...


O senhor Álvaro nunca se casou porque é doente e mostrou-me as cicatrizes das operações e a falta de dentes e as pregas caídas da anca.


- Eu sou tio-avô de duas crianças. Vou-lhe contar a verdade: a minha sobrinha meteu-se na vida...


Quando consegue na sucata sete, oito contos, compra pão, leite e iogurtes e leva os sobrinhos pequenos para sua casa.


- Quando acaba a comida, tenho que ir à minha vida.


Ele acha que as pessoas deviam ir à Brandoa ver a podridão.


- Mete dó ver crianças de 12, 13 anos a fazerem de mulheres da vida! O nosso sistema judicial é tão lento que as coisas, quando acontecem, já é tarde demais.


Eu perguntei-lhe pela criança que vomitava. O senhor Álvaro sorriu. Ficou boa e os Serviços Sociais tiraram-na à mãe. Às vezes, foda-se esta merda, um homem tem que gritar.



salamandrine 11:16



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